sábado, novembro 04, 2006

Entretinha-se a prender caricas às patas dos gatos, a pôr cola em maçanetas e a escrever erros ortográficos na cobertura dos bolos de anos quando ia a festas. Enchia de papel as fechaduras e tirava a água das plantas que estavam em jarras. Ia com tosse à missa e ao cinema.
Agora, conduzia sem carta um peculiar veículo alheio, orgulhosa do seu brinquedo novo. Tinha rádio. Eram insónias: saíra de casa, ainda tarde e já cedo, com um objectivo em mente.
Pintou e pintou linhas contínuas por cima de linhas descontínuas, rindo de boca aberta como a sádica criança, com a cabeça deitada para trás e de olhos fechados, enquanto conduzia, como se de um desenho animado se tratasse.
Escondeu-se, ao fartar-se, e riu-se das notícias quando elas chegaram, espantadas com o fenómeno estranho e com o trânsito louco.
"Pois é! Deus escreve direito por linhas contínuas".
Já estava cumprida a missão a que, fiel, se entregara. Sentia o peso no pulso e no sorriso enquanto ouvia o som dos vidros a baterem os outros contra os uns, uns a partirem e outros a não. O cheiro a deus e a passos furtivos enjoava-a e viciava-a na saída, para a qual corria ouvindo o eco modesto que a pedra lhe respondia com medo de ser ouvida. A pedra era fria.
Quando passou o portão, sorriu para o convento. No dia seguinte, todas as freiras acordaram sem óculos.
Prólogo

No início, não passava de um pensamento pontual que tinha na loucura do tédio sozinho e triste das horas sentada no chão do quarto, a arrancar o pêlo da alcatifa com as mãos suadas e as unhas sujas, de não tomar banho nem sair de casa, de não olhar ao espelho nem pela janela fora. Decidiu sair de casa.