terça-feira, junho 26, 2007

Eram trinta e sete e vinham armados com catanas, com correntes, com matracas. Vinham de tronco nu, tatuados, num molho de pares de calças de ganga já rota. Tinham chapéus de cowboy e botas de cowboy e andar de cowboy, de pernas arqueadas. Vinham todos coordenados em filas que seguiam o líder desarmado. Havia um fuminho no ar, como nos filmes, e isto numa rua que sempre fora escura, nova-iorquina. "Que fazem ali aquelas pessoas, que vivem tão longe deste sítio e deste tempo?"
- Fomos mandados pela Raquel.
Ela soube logo, congelou-se-lhe aquele sangue todo que lhe corria nas veias. Agora sim, tinha medo deles sabendo, desde logo, a encomenda que carregavam cuidadosamente consigo como uma avó carrega uma tarte. Tentaria fugir mas estava, obviamente, num beco. Como se foge a pterodáctilo enraivecido?
Um grupo deles chegou-se à frente, decidido. Os outros juntaram-se atrás numa só fila perfeitamente simétrica como ela odiava, pondo-se todos cinematográficos, estáticos. A fila das matracas, a da frente, tinha escrito "CIÚME" no peito musculoso, moreno, brilhante, plastificado. Dançaram com as matracas numa dancinha mecânica, pequenina, olhando sempre em frente, para ela. Ela não se mexeu. Quando eles pararam a dança ela tirou o chapéu e a gabardine e poisou-os no chão cinzento como se não fossem Jean Paul Gaultier. Ficou à espera de braços cruzados e a bater o pé, insolente, olhando para eles com um certo desprezo elitista de os ver sujos, cheios de pó, com aqueles pés descalços a pisar as poças de água recém chovidas, a sujar as unhas e os espaços entre os dedos, os calcanhares.
Eles vieram e rodearam-na e cobriram-na com golpes de matraca: moeram-lhe as costas, as pernas, os braços, o peito, a barriga: toda ela, deixando a sua cara fria, séria e típica para depois. "Passo um: cores. Amarelo, azul, verde, roxo, rosa, preto, branco, anis, cinzento, fúcsia... Mais cores! Mais cores! Mais cores, por favor! Frutos. Pera, uva, tangerina, ananás, pera, uva, tangerina, ananás, pera, uva. Filósofos! Platão, Sócrates, Aristóteles, Agostinho, Aquino, Bergson, Malebranche, Parménides... Não consigo, não consigo mais."
Um deles, o desarmado tenente-coronel daquele exército disse, muito calmo, com voz de café: «Ela está a desmaiar. Não a deixem desmaiar, por favor.». Foi aí que as matracas se calaram e vieram os estalos, que a acordavam por um instante com um arrepio na espinha, obrigando-a a estar presente no seu julgamento. Era como ouvir o que se diz nas costas, desnecessário. Ela ficava branca, via-se roxa e sentia-se blue. Mas sabia que ainda faltava tanto.
Veio o grupo das correntes, chegou-se à frente e ficou imóvel, a olhar para ela, esperando que o grupo suado das matracas retomasse a sua posição naquela coreografia macabra logo depois de lhe fazer uma vénia com os seus chapéus. Fizeram desenhos no ar com os movimentos rápidos das suas correntes, malabaristas. No peito tinham escrito "AMOR". Lá vieram as correntes chicoteando-a aos pedaços, deixando-a rígida. "Passo dois: O rato roeu a rolha da garrafa de rum do rei da Rússia. Raios! O rato roeu a rolha da garrafa de rum do rei da Rússia. Raios! Ninguém bebe rum. o rum vem de onde, de Cuba? Será Cuba? O rato roeu o rum. Raios! O rato roeu o rum, ruminante, arriscando-se a irritar o rei da Rússia. E a garrafa era de gin, ainda por cima. Ri-te, ri-te, ratinho. Roo-te o rabo reles! Ridículo rato roedor de rolhas de garrafas de rum do rei da Rússia, da Roménia ou do País das Raravilhas. Raios!".
As correntes pararam numa vénia de chapéus cowboys em mãos educadas, mas só depois de lhe terem prendido as mãos. Chegaram-se à frente as catanas que traziam homens com "DESESPERANÇA" escrito no peito na mão. Ela viu, de pulsos bem juntos e presos, as lâminas demasiado grandes para o serviço que eles fizeram cortar o ar na sua exibição de potencial. Começaram, então, quase ironicamente a cortar-lhe, muito ao de leve, a superfície branca da pele dos braços, marcando-a e sofrendo-a. Fizeram-lhe corações com as lâminas nas bochechas e linhas onduladas no resto do corpo, tudo sem lhe rasgar a roupa. "Passo três: Meu Deus, porque sois tão bom, tenho muita pena de Vos ter ofendido. Ajudai-me a não tornar a pecar. Meu Deus, porque sois tão bom, tenho muita pena de Vos ter ofendido. Ajudai-me a não tornar a pecar. Meu Deus, porque sois tão bom, tenho muita pena de Vos ter ofendido. Ajudai-me a não tornar a pecar. E a ter sapatos novos. Pensando bem, eu nunca vos ofendi, sequer. Mas perdoai-me, perdoai-me, perdoai-me. Porque sois tão bom. Sois todo bom."
Já tinham acabado. Voltaram à posição de início e o tenente-coronel afinal tinha arma: tirou do bolso um pequeno envelope e, depois de a libertar das correntes dos pulsos, poisou-lhe o envelope nas mãos com muita delicadeza. «Com licença.», disse ele ao levantar-se das suas cócoras de chegar ao chão onde ela estava meia sentada, meia deitada. foi-se embora o exército robot de mercenários com a sua pizza já entregue.
«Já sentiste o que eu senti. E lembra-te: ainda faltam os remorsos».
Lynn leu.
Vestiu os Jean Paul Gaultier e saiu de cena, a ganhar.
Foi sem ligaduras e cheia de sangue passear pelo recreio de um infantário.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

inspiras-me. continua a escrever por favor.

julho 20, 2007  
Blogger Lara said...

Tu, ó mona, quem é o António João Mito?

julho 22, 2007  
Blogger Maria Ana said...

Não sei. Devia saber?

julho 24, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Especula-se sobre a minha pessoa? www.ajmpoetry.blogspot.com

recomendaram-me este blog e pelo que parece valeram todas as visitas

agosto 27, 2007  

Enviar um comentário

<< Home