sábado, novembro 24, 2007

Ai, o que ela salivava ao ver que vinha aí o Natal, o que ela roçava as mãos uma na outra, o que o friozinho dela no estômago aumentava, o que os dentes rangiam num bruxismo acordado. Eram os atentados, fervilhando. Tudo isto para voltar a casa, olhar a mãe sempre mais velha nos olhos e ouvir:

"Volta, estás perdoada"

terça-feira, julho 24, 2007

Um dia, passeando de noite pelas pontes da cidade, encontrou de tarde um rapaz triste parado mesmo no meio da ponte. Ele chorava três lágrimas por segundo e estava, pobrezinho, vestido de verde, o que é já de si bastante agressivo. Tapava a cara com as duas mãos e soluçava, desesperado, fungando o mundo para dentro e tremendo de não conseguir manter-se na mesma posição um só segundo, um desses segundos de três lágrimas que era assim que se contavam.

Ela era muito bondosa, sempre fora, coração de manteiga. Passou-lhe a mão pelos ombros, beijou-lhe a testa e tocou-lhe no cabelo num “Pronto, pronto…” muito maternal. O rapaz soluçou com mais força, apoiando a cabeça no ombro dela, todo vidrinho de cheiro, e enchendo-lhe a camisola de lágrimas e ranho. Não a apertava, estava assim, de braços caídos, todo derrotado pela hemorragia que lhe saía dos pulmões para os olhos, tuberculoso de desesperança.

“Não faz sentido. Já nada faz sentido. Perdi a esperança e quero morrer”, disse ele num daqueles uivos melodramáticos de que as senhoras gostam tanto nas novelas. “A minha vida acabou e ainda sou tão novo”. “É porque és”, pensou ela a olhar-lhe para os vinte e cinco anos estampados na cara.

Acendeu um cigarro e perguntou-lhe se queria. Ele disse que não fumava.

Tirou a sua garrafa de bolso do interior do casaco e perguntou-lhe se queria. Ele disse que não bebia.

“Pois, assim é difícil”, disse ela, pensando se o atentado ali era morrer ou ficar. Mas decidiu-se: disse-lhe “Confesso que isso, por aí, não me parece estar muito famoso” e, ao virar costas para ir embora, ouviu “Hei-de encontrar-te lá em cima” e, passadas cerca de quinze lágrimas, “splash”. “Nem tive tempo de lhe dizer que estão à minha espera lá em baixo..”, pensou, aborrecida.

terça-feira, junho 26, 2007

Eram trinta e sete e vinham armados com catanas, com correntes, com matracas. Vinham de tronco nu, tatuados, num molho de pares de calças de ganga já rota. Tinham chapéus de cowboy e botas de cowboy e andar de cowboy, de pernas arqueadas. Vinham todos coordenados em filas que seguiam o líder desarmado. Havia um fuminho no ar, como nos filmes, e isto numa rua que sempre fora escura, nova-iorquina. "Que fazem ali aquelas pessoas, que vivem tão longe deste sítio e deste tempo?"
- Fomos mandados pela Raquel.
Ela soube logo, congelou-se-lhe aquele sangue todo que lhe corria nas veias. Agora sim, tinha medo deles sabendo, desde logo, a encomenda que carregavam cuidadosamente consigo como uma avó carrega uma tarte. Tentaria fugir mas estava, obviamente, num beco. Como se foge a pterodáctilo enraivecido?
Um grupo deles chegou-se à frente, decidido. Os outros juntaram-se atrás numa só fila perfeitamente simétrica como ela odiava, pondo-se todos cinematográficos, estáticos. A fila das matracas, a da frente, tinha escrito "CIÚME" no peito musculoso, moreno, brilhante, plastificado. Dançaram com as matracas numa dancinha mecânica, pequenina, olhando sempre em frente, para ela. Ela não se mexeu. Quando eles pararam a dança ela tirou o chapéu e a gabardine e poisou-os no chão cinzento como se não fossem Jean Paul Gaultier. Ficou à espera de braços cruzados e a bater o pé, insolente, olhando para eles com um certo desprezo elitista de os ver sujos, cheios de pó, com aqueles pés descalços a pisar as poças de água recém chovidas, a sujar as unhas e os espaços entre os dedos, os calcanhares.
Eles vieram e rodearam-na e cobriram-na com golpes de matraca: moeram-lhe as costas, as pernas, os braços, o peito, a barriga: toda ela, deixando a sua cara fria, séria e típica para depois. "Passo um: cores. Amarelo, azul, verde, roxo, rosa, preto, branco, anis, cinzento, fúcsia... Mais cores! Mais cores! Mais cores, por favor! Frutos. Pera, uva, tangerina, ananás, pera, uva, tangerina, ananás, pera, uva. Filósofos! Platão, Sócrates, Aristóteles, Agostinho, Aquino, Bergson, Malebranche, Parménides... Não consigo, não consigo mais."
Um deles, o desarmado tenente-coronel daquele exército disse, muito calmo, com voz de café: «Ela está a desmaiar. Não a deixem desmaiar, por favor.». Foi aí que as matracas se calaram e vieram os estalos, que a acordavam por um instante com um arrepio na espinha, obrigando-a a estar presente no seu julgamento. Era como ouvir o que se diz nas costas, desnecessário. Ela ficava branca, via-se roxa e sentia-se blue. Mas sabia que ainda faltava tanto.
Veio o grupo das correntes, chegou-se à frente e ficou imóvel, a olhar para ela, esperando que o grupo suado das matracas retomasse a sua posição naquela coreografia macabra logo depois de lhe fazer uma vénia com os seus chapéus. Fizeram desenhos no ar com os movimentos rápidos das suas correntes, malabaristas. No peito tinham escrito "AMOR". Lá vieram as correntes chicoteando-a aos pedaços, deixando-a rígida. "Passo dois: O rato roeu a rolha da garrafa de rum do rei da Rússia. Raios! O rato roeu a rolha da garrafa de rum do rei da Rússia. Raios! Ninguém bebe rum. o rum vem de onde, de Cuba? Será Cuba? O rato roeu o rum. Raios! O rato roeu o rum, ruminante, arriscando-se a irritar o rei da Rússia. E a garrafa era de gin, ainda por cima. Ri-te, ri-te, ratinho. Roo-te o rabo reles! Ridículo rato roedor de rolhas de garrafas de rum do rei da Rússia, da Roménia ou do País das Raravilhas. Raios!".
As correntes pararam numa vénia de chapéus cowboys em mãos educadas, mas só depois de lhe terem prendido as mãos. Chegaram-se à frente as catanas que traziam homens com "DESESPERANÇA" escrito no peito na mão. Ela viu, de pulsos bem juntos e presos, as lâminas demasiado grandes para o serviço que eles fizeram cortar o ar na sua exibição de potencial. Começaram, então, quase ironicamente a cortar-lhe, muito ao de leve, a superfície branca da pele dos braços, marcando-a e sofrendo-a. Fizeram-lhe corações com as lâminas nas bochechas e linhas onduladas no resto do corpo, tudo sem lhe rasgar a roupa. "Passo três: Meu Deus, porque sois tão bom, tenho muita pena de Vos ter ofendido. Ajudai-me a não tornar a pecar. Meu Deus, porque sois tão bom, tenho muita pena de Vos ter ofendido. Ajudai-me a não tornar a pecar. Meu Deus, porque sois tão bom, tenho muita pena de Vos ter ofendido. Ajudai-me a não tornar a pecar. E a ter sapatos novos. Pensando bem, eu nunca vos ofendi, sequer. Mas perdoai-me, perdoai-me, perdoai-me. Porque sois tão bom. Sois todo bom."
Já tinham acabado. Voltaram à posição de início e o tenente-coronel afinal tinha arma: tirou do bolso um pequeno envelope e, depois de a libertar das correntes dos pulsos, poisou-lhe o envelope nas mãos com muita delicadeza. «Com licença.», disse ele ao levantar-se das suas cócoras de chegar ao chão onde ela estava meia sentada, meia deitada. foi-se embora o exército robot de mercenários com a sua pizza já entregue.
«Já sentiste o que eu senti. E lembra-te: ainda faltam os remorsos».
Lynn leu.
Vestiu os Jean Paul Gaultier e saiu de cena, a ganhar.
Foi sem ligaduras e cheia de sangue passear pelo recreio de um infantário.

sábado, abril 21, 2007

Lá estava o barulho das pantufas de pelinho, roçando-se no chão e o chão roçando-se nelas, foda-se. Passinhos de silêncio, de quem não quer acordar as janelas nem as portas, de medinho. Apostava, nervosa, que ela levava uma chávena de chá na mão adiando o prazer para quando estivesse deitadinha, de perninhas esticadas, apoiadas numa almofada por causa das varizes, pernas azuis. Imaginava-a, ouvindo-a passear pela alcatifa como se de um ácaro se tratasse, desenhava-lhe os dias no seu tecto. Ficava assim, horas sem fim a ouvi-la passear.

Ela era velha, rugosa, cheirava a mofo e a medicamentos. Tinha o cabelo branco e vestia bata. Nem uma visita, e queixava-se, nem um “passou-bem?”, nem um trrim-trrim. Ria-se e ria-se a vizinha de baixo, maldosa, com a mão à frente da boca, esquiva. Era assim, comichosa, remorsenta, juventude velha e velhice morta, que belo par de jarras. E essa tal vizinha de baixo, manienta de atentados, perdia-se no plano maquiavélico, desejosa, de olhos brilhantes e a trincar os lábios, a língua, os dentes, sedenta. Esfregava as mãos, desenho animado.

Foi à papelaria do Senhor Antipático e comprou maços de tabaco, quarenta e setenta, logo. Depois, pediu-lhe papel de carta. Pobre velha, que desabafava com a porteira que desabafava com a inferior vizinha o filho morto e a filha como morta, calada da mãe e da terra natal. Escreveu a carta, sorriso lateral e caneta dourada, e foi pô-la bem no correio. Dizia que gostava muito dela e tinha muitas saudades, como antigamente.

sábado, fevereiro 24, 2007

“Iiiiiii” diziam-lhe as rodas da sua cadeirinha nova, recém roubada, como deus manda. Empurrava-a um senhor daqueles que usam pullover e camisa rosa com gravata vermelha, já velhote: pés para a cova, aquele já ia a caminho. E ela lá ia na conversa dele levada enxuta a falar do tempo húmido, dos filhos, da mulher morta e do cãozinho doente, coitadinho: “são vómitos, sabe, menina? Aquilo deve ser uma otite!”. E ela dizia “Mas que consumição”, consumindo-se, assumindo suas as preocupações do velho senhor da camisa rosa e gravata vermelha, vincando as rugas da testa e pondo o dentinho de fora, o lábio de lado. “Então, menina, como é que isto foi acontecer?”, tossia o velhote apontando para a cadeira. “Foi acidente. De carro. Tinha bebido… São os jovens, são os jovens…”.

O homem ficou com lágrimas nos olhos que ela viu, ela viu e viu mesmo. As mãos tremeram, juntas ao metal para fingir que era tudo frio. Era uma subida e o homem não conseguia, custava-lhe, era muito difícil. Mas continuava a empurrar a cadeira, mantendo-se fiel ao oferecido. E empurrou-a até cima, até ao sol, a suar, ofegante. Quando chegaram, depois de se despedir, a menina abriu a boca para falar e disse “Então, não se diz «Obrigado»?”. Levantou-se e foi-se embora.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Ia à igreja todos os dias. Chorando criança e ajoelhando-se adolescente, pedia a deus que existisse. Perguntava-lhe "Porquê?", melodramática, e, no fim, mandava-o sempre foder. Chorava e chorava, no altar, de mãos juntas e joelhos separados, de cabeça baixa. Deprimia-se de fora para dentro e virava-se do avesso no fim. Ao ir-se embora, cuspia na água benta.

sábado, novembro 04, 2006

Entretinha-se a prender caricas às patas dos gatos, a pôr cola em maçanetas e a escrever erros ortográficos na cobertura dos bolos de anos quando ia a festas. Enchia de papel as fechaduras e tirava a água das plantas que estavam em jarras. Ia com tosse à missa e ao cinema.
Agora, conduzia sem carta um peculiar veículo alheio, orgulhosa do seu brinquedo novo. Tinha rádio. Eram insónias: saíra de casa, ainda tarde e já cedo, com um objectivo em mente.
Pintou e pintou linhas contínuas por cima de linhas descontínuas, rindo de boca aberta como a sádica criança, com a cabeça deitada para trás e de olhos fechados, enquanto conduzia, como se de um desenho animado se tratasse.
Escondeu-se, ao fartar-se, e riu-se das notícias quando elas chegaram, espantadas com o fenómeno estranho e com o trânsito louco.
"Pois é! Deus escreve direito por linhas contínuas".